10 de abril de 2016

Artigo sobre "A perturbação da hiperatividade e défice de atenção [PHDA]"


LUÍS BORGES, NEUROPEDIATRA

"«A dislexia e o défice de atenção estão muitas vezes ligados. É o meu caso.»

Encurtava as aulas, multiplicava os intervalos, mudava as metas curriculares, dava
aos professores mais formação na área das neurociências e garantia aos miúdos
mais tempo para brincar. Se pudesse, o neuropediatra Luís Borges mudava a
escola. E medicava muito menos.

Ainda existem «bichos-carpinteiros» e «cabeças-no-ar»?
Sempre existiram e sempre existirão. A perturbação da hiperatividade e défice de atenção
[PHDA] tem uma base genética: as crianças herdam dos pais os genes que vão condicionar este
tipo de comportamento. O que acontece é que, depois, o ambiente pode facilitar ou dificultar o
aparecimento dos sintomas – a hiperatividade, a impulsividade e/ou défice de atenção.

A hiperatividade traz sempre associado um défice de atenção?
Julgo que sim, só que na criança mais pequena, que parece ter pilhas Duracell, o que chama
mais a atenção é a hiperatividade. Mas com a idade isso vai melhorando. A hiperatividade é o
primeiro sintoma a desaparecer, e fica a impulsividade e o défice de atenção.

E o contrário pode acontecer? Um miúdo pode ter apenas défice de atenção, sem
nunca ter sido hiperativo?
Essa é a face mais desconhecida da PHDA, mas que na realidade corresponde de 20 a 25 por
cento dos casos. São crianças que são até hipoativas, digamos assim, mas que têm défice de
atenção. Chamam-lhes day dreamer ou criança sonhadora. Na sala de aula, estão lá, mas não
estão. São situações mais complexas e para as quais é preciso alertar pais e professores. Desde
logo, porque são crianças socialmente mais tímidas, com maior tendência para o isolamento,
para a ansiedade e até a depressão. E depois, porque, estão quietinhas e não perturbam, o
problema passa despercebido, muitas vezes só é detetado mais tarde.

… quando surgem os problemas de aprendizagem.
Sim. Sempre que uma criança tem fracos resultados escolares, é preciso saber porquê. Pode ter
um certo atraso no desenvolvimento, mas a maior parte das vezes tem na verdade problemas de
outra ordem, como os do défice de atenção ou as dislexias.

Com que idade chegam os miúdos às suas consultas?
Os hiperativos, por norma, começam a ter problemas no primeiro ano da escola. Até lá, apesar
de serem crianças muito ativas, passam muitas vezes despercebidas. Os problemas surgem
quando têm de estar sentados a uma secretária das 09h00 às 17h30…

Passam tempo de mais na escola?
Sim. Dizem-me: «Ah, mas a partir das 15h00 são atividades extracurriculares…» É mais do
mesmo. Os professores de Música e de Inglês também lhes exigem que estejam com atenção e
vão avaliá-los no final. A PHDA tem uma base genética, mas ter começado a exigir-se demasiado
dos mecanismos da atenção não ajuda. Eu até acharia bem que a escola retivesse as crianças até
às 17h30, porque isso facilita a vida dos pais. Mas esse tempo deveria ser preenchido com
tempos livres. Ter um animador na escola e permitir que a criança jogasse à bola, brincasse,
fizesse teatro, cantasse… o que lhe apetecesse. Não sou contra a Música ou o Inglês. Mas das
09h30 às 15h30 a criança devia ter tempo para todas estas aprendizagens, curriculares e
extracurriculares. Como não sou contra os trabalhos de casa, mas acho que são de mais e podiam
ser substituídos por atividades de leitura. As crianças precisam de brincar – e não têm tempo
para isso.

Seria preciso mudar a própria escola.
Há algumas coisas que não têm que ver com a escola. Uma delas é o sono: as crianças devem
dormir nove a dez horas por noite. Uma criança que dorme pouco tem dificuldade em
concentrar-se e grande parte da nossa memória de longo prazo é feita durante o sono. Depois, há
o desporto: a atividade motora liberta substâncias que relaxam, o que vai facilitar a
aprendizagem. E há outra coisa importante: o uso exagerado dos tablets e dos telemóveis.
Porque a atenção que se usa num jogo de computador é totalmente diferente da que se utiliza
para ler e compreender um texto, e as crianças vão habituar-se àquele tipo de atenção… Tudo
isso, eu digo aos pais. Mas sim, seria sobretudo importante mudar escola, mudar os programas,
aliviar os professores da pressão das metas curriculares… Aos seis anos, é o currículo que deve
encaixar na criança e não o contrário.

O que está errado nos programas e nas metas do 1º ciclo?
A velocidade com que as crianças têm de dominar a leitura, por exemplo. Os dois primeiros anos
devem ser para aprender a ler. Para depois a criança poder passar a ler automaticamente e a
compreender. Mas não. Se ao fim do primeiro ano o miúdo não está a ler vai começar a ter
problemas e começa o seu insucesso. E depois a exigência da matemática, do cálculo… Nós
aprendíamos coisas no sexto ano que hoje são dadas no quarto e o cérebro dos miúdos não
melhorou de um dia para o outro. Há coisas que não estão de acordo com as capacidades das
crianças. Eles conseguem, mas com grande esforço, grande stress e sem alegria. Ao nível do
cérebro, quando a criança faz uma conta bem feita e tem sucesso, é libertada uma substância que
gera bem-estar, a dopamina. Já o insucesso liberta as hormonas de stress, a adrenalina, que
muitas vezes bloqueiam a capacidade de raciocínio. Se a criança tem medo de errar, não está em
boas condições para aprender. Depois, o stress acumula-se e a motivação que é o motor para
aprender não existe, a escola torna-se «uma seca».

É isso que vê nos miúdos que chegam à consulta?
Sim, miúdos stressados, muitos com problemas de sono, que muito frequentemente choram
para ir para a escola, com medo de falhar… Nas crianças com PHDA isso acontece muito. Até
porque outra coisa que tem que ver com os défices de atenção, que não está nas classificações
internacionais, mas que devia estar, é a parte emocional. São miúdos emocionalmente frágeis,
que lidam mal com a frustração, com as emoções – e muitas vezes com problemas sociais. Os
colegas não os suportam porque, mesmo nas brincadeiras, não se pode contar com eles. Estão à
baliza e quando o outro chuta, eles estão pendurados na trave… Querem corresponder às
expetativas dos outros, mas não conseguem.

E por é que não conseguem?
No nosso sistema nervoso, aquilo a que chamamos a função executiva – que nos permite
organizar, planear, executar e monitorizar o que fazemos durante o dia –, começa a desenvolverse
lentamente, amadurece e está na sua plena funcionalidade por volta dos 20 anos. E nessas
crianças, o que acontece é que essa função está desenvolver-se mais lentamente, às vezes com
três ou quatro anos de diferença em relação ao padrão.

Quais são as implicações práticas da imaturidade dessa parte do cérebro?
O sistema que regula as atividades que fazemos no dia-a-dia, que é o que nos permite falar
enquanto conduzimos, de forma automática, por exemplo, não está a funcionar. E isso faz que
falhe a autorregulação – o professor tem de lhe dizer 20 vezes para se virar para a frente. Além
disso, implica com aquilo a que chamamos memória de trabalho, ou de curto prazo. Se o
professor disser: «Agora abram o livro na página 23 e vão à linha nº 14 procurar quantos verbos
estão no infinito…», o miúdo com défice de atenção ficou com a primeira informação, o resto já
se apagou. Ele não consegue pôr na memória de trabalho essa informação toda. O professor tem
de dizer-lhe o número da página, deixá-lo abrir o livro, depois indicar-lhe a linha, esperar que a
encontre, e só depois explicar o resto.

Porquê?
Os miúdos com PHDA ou dislexia têm uma memória de trabalho curta. Se lhes for dado um
problema de matemática, em que eles têm de primeiramente somar, para depois subtrair e
dividir, eles têm de o fazer por partes. Se lerem o enunciado todo de seguida, ficam
completamente perdidos… e vão responder à primeira coisa que lhes vier à cabeça. A memória
de trabalho é fundamental para a aprendizagem – e fala-se muito pouco sobre isso. Os
professores deviam ter mais conhecimentos sobre neurociências e a sua importância
nos processos de aprendizagem.

O sistema agrava o problema das crianças com PHDA, é isso?
O problema da PHDA tem uma base genética. Ou seja, mesmo que tudo isto fosse melhorado,
continuaria a haver défice de atenção. Mas seriam menos os casos, porque se estaria a respeitar
mais o ritmo de amadurecimento das estruturas cerebrais – e, muito provavelmente, haveria
também menos crianças medicadas. Porque hoje em dia é fácil: a criança mexe-se muito, a
professora já sabe que há um comprimido que faz que ele fique quieto, insiste com os pais… e os
médicos acabam por entrar nesse jogo. Eu próprio faço isso.

Medica-se de mais para a PHDA?
Pela falta de conhecimento do que é a PHDA e de como se pode ajudar as crianças desde cedo a
melhorar, medica-se demasiado, não tenho dúvida nenhuma. Se a escola não exigisse tanto, se a
criança não estivesse tanto tempo na sala de aula, se pudesse ir mais vezes ao recreio, se tivesse
períodos mais curtos de atenção, provavelmente as coisas podiam funcionar melhor… mas isso
não acontece. E aí ficamos sem alternativa, porque ou se medica aquela criança ou ela vai ter
insucesso escolar.

É uma decisão difícil…
Como os défices de atenção são uma epidemia nacional, eu acho que o assunto devia ser mais
debatido e só se devia medicar mediante critérios bem definidos. Mas é preciso dizer que
estamos a falar de uma medicação que em 80 por cento dos casos é eficaz e que é bem tolerada,
sem efeitos colaterais. Eu próprio a tomo, aos 78 anos, todos os dias.

Utiliza o seu exemplo quando fala com os pais e com os miúdos em consulta?
A dislexia e o défice de atenção estão ligados muito frequentemente, há uma percentagem
grande de crianças que têm os dois problemas – e é o meu caso. Fiz o meu próprio diagnóstico a
posteriori. Quando era miúdo, o que havia era «bichos-carpinteiros» e eu era um «cabeça-noar
». Sofri o estigma… Perdi dois anos no primeiro ano da escola primária e só à terceira é que
passei. Depois, mais tarde, já na faculdade, voltei a ter problemas com a anatomia, com os
nomes em latim… Conto muitas vezes isto, sobretudo aos miúdos, para eles perceberem que «o
doutor», que chegou a médico e foi diretor de um serviço no hospital e essas coisas todas, perdeu
anos na escola. Digo-lhes que acreditei sempre – «Eu sou capaz de chegar lá, porque sou
inteligente.» E explico-lhes que é isso que eles têm de fazer, que o importante é ter confiança de
que se vai conseguir.

No seu caso, o défice de atenção permaneceu na idade adulta.
A PHDA nem sempre desaparece. Afeta nove por cento das crianças, oito por cento dos
adolescentes e quatro por cento dos adultos.

Isso significa que também medica alguns pais?
Frequentemente, cada vez mais. Lembro-me de um pai que estava sentado com o filho e às
tantas pediu para se levantar, deu uma volta à secretária, sentou-se, depois levantou-se outra vez
e encostou-se à parede. E eu a ver toda aquela atividade… Acabou por perguntar se eu não
achava que a medicação lhe faria bem a ele também e eu disse-lhe: «Tenho quase a certeza que
sim.» O pai tinha défice de atenção e era um pouco hiperativo. A mãe sabia. Até já tinha deixado

cair…: «Senhor doutor… tal pai, tal filho!»"

Retirado da NOTICIAS MAGAZINE de 03/04/2016


LUÍS BORGES
Tem 78 anos, é neuropediatra, preside à Associação Nacional de Intervenção Precoce (ANIP) e
continua ligado ao Hospital Pediátrico de Coimbra, instituição que lhe prestou homenagem
dando o seu nome ao Centro de Desenvolvimento da Criança. Tornou-se uma referência na área
das dislexias e PHDA, mas nas consultas os miúdos ouvem também outra história: «o doutor»
tem défice de atenção até hoje e, por causa da dislexia, chumbou no primeiro ano da escola

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